As várias faces da mesma mulher: Hester Prynne na história, literatura e cinema
Breno Martins Campos (UPM; PUC-SP)
Literatura; cinema; gênero
ST 52 – Gênero em cena – abordagens da feminilidade e da masculinidade através do cinema e da
literatura
Hester Prynne é uma mulher multimídia (como é comum dizer hoje em dia): ocupa espaço
na literatura, seu locus de origem, e também nos quadrinhos (HQ), música, teatro, cinema, internet.
A despeito de ser personagem de obra de ficção (o que a torna muito real) – o conto, expandido em
romance, A letra escarlate
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–, é como se ela sempre tivesse existido. Melhor: pode-se dizer que, se
nunca existiu, foi para que existisse sempre (pelo menos, no passado e no presente) – e não somente
nos EUA.
Gilles Lipovetsky, em A terceira mulher,
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pergunta a respeito das causas do que ele chama
de a exceção estadunidense (politização e juridicização) em relação à sexualidade. Quer saber se o
caso de exceção nos EUA é o primeiro de uma série, transformando-se em precedente que vai
conquistar as democracias ocidentais, ou se é o único e vai permanecer assim. De passagem é
possível dizer que o filósofo aposta na força do Velho Mundo para resistir ao modelo estabelecido
nos EUA.
Liga-se muitas vezes a exceção americana em matéria de relação com a
sexualidade a seu passado puritano. Na imprensa, dos dois lados do Atlântico, é
freqüente apresentar a cultura americana como um produto da herança dos pais
peregrinos e da exagerada pudicícia do ascetismo protestante; diversas análises
procuram mostrar os laços que existem entre uma religião que nega qualquer
espécie de elemento sensual e emocional e a "guerra dos sexos" que prevalece na
América.
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Se não há dúvida de que a tradição religiosa influencia a especificidade do caso, Lipovetsky
considera que não é possível parar por aí na busca de suas causas.
Antes de tudo, nem é preciso lembrar, o ascetismo protestante não se desenvolveu
exclusivamente em solo americano. Ora, na Europa onde nasceu, seus efeitos sobre
a relação com o sexo não são em parte alguma equivalente ao que se pode observar
do outro lado do Atlântico. Em segundo, a hipótese puritana não permite
compreender o fato novo de que já não é a concupiscência como tal que se vê
lançada ao opróbrio, mas o sexo como relação de poder, como sujeição e opressão
do feminino. À condenação puritana dos prazeres sensuais sucedeu a excomunhão
de todas as relações de dominação dos homens sobre as mulheres na esfera do
sexo. Semelhante politização do sexo não pode ser reduzida a um vestígio do
ascetismo secular protestante.
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Lipovetsky afirma menos a tradição puritana e mais a emergência da força moderna do
contrato e do direito para explicar a exceção estadunidense: "Como se sabe, a América foi
concebida, desde a origem, como uma associação de indivíduos iguais ligados entre si por um
contrato sujeito à aprovação de todos os interessados".
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O teórico invocado para corroborar seus
argumentos é Alexis de Tocqueville,
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para quem as circunstâncias que presidem o nascimento de
uma nação acabam por influenciar todo seu desenvolvimento, carreira histórica e caráter nacional.
Por um lado, a força do passado puritano na mentalidade dos cidadãos é insuficiente como
única explicação causal da situação estadunidense em relação ao sexo. Por outro lado, se é certo que
o puritanismo é inglês, não é demais lembrar que os ingleses puritanos que deixaram a Europa
firmaram um pacto ainda no navio Mayflower para conquistar a América para a glória de Deus. Os
que viajaram para fundar a Nova Inglaterra eram movidos por uma idéia: "O puritanismo foi quase
tanto uma teoria política quanto doutrina religiosa. Logo que desembarcaram nessa costa inóspita, a
primeira preocupação dos imigrantes foi, portanto, a de organizar-se em sociedade".
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Tratava-se de
nova conquista de outra Terra Prometida – Deus à frente de tudo –, não mais "uma pequena tropa de
aventureiros buscando fortuna além dos mares; é a semente de um grande povo que Deus vem
plantar, com suas próprias mãos, em terra predestinada".
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A tradição contratualista pode ser tomada
como posterior à puritana – no mínimo, são concomitantes – e o contrato firmado no navio antecede
todos os outros assinados, todas as leis, em terras da Nova Inglaterra.
O que é puritanismo, afinal? Para o senso comum o termo puritanismo está relacionado a
questões sexuais. É preciso ampliar o sentido: a prática do ascetismo intramundano ou ética
puritana não se resume à rejeição dos prazeres sexuais, puritanismo não é somente sexo. Se não é
somente sexo, é sexo também. Por via paralela: também não é somente honestidade, embora o
puritanismo seja mesmo um conjunto de moralidades que inclui a honestidade como um de seus
frutos mais maduros. Também não é somente respeito à propriedade privada, vida de fé e religião,
defesa da família nuclear, apologia das guerras justas ou santas, afastamento do gozo estético,
limitação da reflexão e do livre pensamento, incentivo ao trabalho, frugalidade e economia.
Não é caso de apresentar a genealogia do puritanismo, mas um recurso à história é viável:
concepções que possam se chamar prototípicas de puritanismo sempre permearam o espírito e a
práxis humana, mesmo que sob outros nomes ou rótulos, mesmo fora de contextos religiosos,
mesmo longe do Ocidente. O que não impede a consideração de que houve uma radicalização cristã
e depois protestante das idéias de luta contra o mal, o pecado e a carne, de ascetismo a favor de uma
vida superior, de mortificação do corpo e da carne para elevação do espírito, de desprezo da história
em favor da eternidade, do exercício do autocontrole e da frugalidade contra o gozo dos prazeres.
Em resumo: rejeição do mundo. 3
Já se tornou clássica na sociologia brasileira da religião, especialmente do protestantismo,
uma não-definição proposta por Antonio Gouvêa Mendonça: "Não se pode (...) com exatidão dar
uma definição do puritanismo. É um modo de ser, de ver os homens e as coisas sob o prisma da fé
religiosa. É, essencialmente, um modo de viver".
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Ver os homens e as coisas sob o prisma da fé
religiosa, dentre outras coisas, significa ver as coisas através das lentes que sistematizam
teologicamente determinada fé religiosa.
Autor de A letra escarlate e de outros contos e romances, Nathaniel Hawthorne conseguia
colocar em constante diálogo o real e o imaginário, a vida e a ficção. Seus textos e fantasias, sempre
com certo teor moral, nasciam da imaginação de uma existência tocada pela religião. É difícil
imaginar sua literatura sem a influência puritana sofrida por ela. Literatura nascida como caminho
para o expurgo da religião e que acabava paradoxalmente por reforçá-la. Em A letra escarlate,
Hawthorne (no século XIX) recriou o ambiente puritano de uma comunidade na América do século
XVII e ofereceu a seu leitor e leitora uma imagem da condição da mulher naquele contexto.
Jorge Luis Borges proferiu conferência a respeito de Hawthorne em março de 1949, no
"Colegio Libre de Estudios Superiores", cujo texto foi publicado em seu livro Outras inquisições de
1952.
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Borges apresenta Hawthorne como um sonhador, escritor das fantasias de um mundo
imaginário em forma de contos e romances. Literatura de gênero fantástico e alegorias que entraram
na vida de Hawthorne desde muito cedo – por meio de leitura da Bíblia, especialmente. Interessam
aqui as condições sociais anteriores ao registro do texto e as contemporâneas dele: Hawthorne era
puritano por origem familiar e cidade natal. Ex-capital do puritanismo em a Nova Inglaterra, Salem
era um local de nascimento que não deixava ninguém impune diante da ética puritana.
Hawthorne apresentava-se como um homem atormentado por seu puritanismo, ou melhor,
pelo recebido por herança de seus ancestrais (dentre eles, um caçador de bruxas em Salem);
atormentado também pela teologia da predestinação radical dos calvinistas; atormentado ainda pela
noção de soberania do Deus todo-poderoso, que esvazia o ser humano em suas potencialidades; por
fim, atormentado pela noção inexorável de pecaminosidade, intolerância dos dogmas,
obrigatoriedade dos frutos materiais e de outras doutrinas transformadas em exigência ética, moral.
Ele foi um puritano atormentado consigo mesmo e que fez da literatura sua arte para retratar
a realidade que observava, analisava, ajudava a construir e da qual fugia, às vezes, como eremita.
Fez da literatura um caminho particular de salvação e de expurgo do que ele chamava de maus
traços puritânicos presentes em seus antepassados. Crítico silencioso, ou pouco ruidoso, do
puritanismo e de sua inserção nele, reinventou o puritanismo, mas o receio do inferno não lhe
permitiu abandoná-lo. Não lhe foi permitido um rompimento definitivo com os ancestrais e sua
história de horror. 4
Sem dúvida, alguns destes austeros e carrancudos puritanos devem ter pensado,
seria mais que suficiente castigo de seus pecados que, com o rodar dos anos, o
velho tronco da árvore familiar, coberto de respeitável camada de musgo, houvesse
de produzir, na extremidade de seu ramo mais elevado, um vagabundo como eu.
Nenhuma das aspirações, que eu tenha acariciado, eles a teriam reconhecido como
digna de louvor; nenhum de meus êxitos, – se é que minha vida, para além do
circulo doméstico, tem sido bafejada pelo êxito, – eles o reputariam senão como
sem valor, quando não totalmente ignominioso. "Quem é ele?" murmuram entre si
as sombras acinzentadas de meus avoengos. "Um escritor de livros de contos! Que
espécie de ocupação é essa na vida, que modo de glorificar a Deus e de prestar
serviços aos homens de sua geração? Uai! o rebento degenerado podia também ter
saído um violinista!" São estas as saudações trocadas entre meus antepassados e a
minha ilustre pessoa, através do golfo do tempo! Deixemo-los escarnecer de mim
quanto quiserem, não resta dúvida que fortes traços de sua natureza se cruzaram
com os meus.
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Será possível a um escritor – tão dado ao ócio necessário à inventividade e criatividade, que
vive da e para a reflexão – exercitar a ética profissional puritana de quem trabalha para a glória de
Deus? "Hawthorne nunca deixou de sentir que a tarefa do escritor era frívola ou, o que é pior,
culpada".
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Sem que assumisse explicitamente, retornou a Salem para trabalhar. Assumiu posto de
superintendência na alfândega dos EUA localizado naquela cidade. Foi no prédio da instituição que,
num dia de chuva ao remexer em entulhos amontoados, ele encontrou a documentação antiga que o
inspirou a escrever a história. "Este incidente reconduziu, de algum modo, meu espírito a seu velho
trilho. Pareceu-me haver ali matéria para um conto".
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Três anos depois de ter iniciado seu trabalho em Salem, com a mudança no governo dos
EUA em 1849, veio a demissão por motivações políticas. Àquela altura de sua história pessoal,
Hawthorne achava-se entretido em cálculos de quantos anos teria pela frente na alfândega e de
como poderia aproveitar ainda a vida depois da aposentadoria. Foi com a demissão que o espírito do
escritor, do homem de letras, tomou conta de si novamente. Havia sido recolocado nos trilhos de
sua vida, ainda que para desgosto da memória puritana de seus antepassados e de sua ética.
Para uma grave contingência nada melhor do que o consolo advindo da racionalização que
atribui à Providência as decisões e o destino. O puritanismo de Hawthorne não lhe permitiu escapar
a uma explicação providencial para o caso de sua vida e demissão, o que foi para melhor de fato, os
EUA perderam um funcionário, e a literatura, seu verdadeiro chamado, recuperou um autor em seu
vigor. A letra escarlate apresenta-se como um clássico da literatura estadunidense, a respeito de
uma sociedade fortemente influenciada pelos ideais vitorianos ingleses de moral e sexualidade, com
uma dose paradoxal de relativização, pois Hawthorne esforça-se para acrescentar tolerância às
interpretações e atitudes puritânicas de seus antepassados e dos conterrâneos de seu tempo.
A introdução do livro A letra escarlate tem por título "O edifício da alfândega", na qual o
autor do livro Nathaniel Hawthorne escreve um pouco a respeito de si mesmo, seu passado e 5
retorno a Salem. O texto mescla realidade e ficção. Ao descrever uma sala daquele edifício muita
coisa se revela do pensamento do autor (e talvez da sociedade de seu tempo) acerca das mulheres:
A dita sala está forrada de teias de aranha e repleta de pinturas antigas; o assoalho,
coberto de saibro, coisa que já passou de moda em toda a parte; do desleixo visível
em todo o local, facilmente se infere tratar-se de um santuário ao qual raramente
tem acesso o sexo feminino, com seus instrumentos mágicos, que são a vassoura e
o esfregão.
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No dia de chuva em que Hawthorne encontrou, ou alegou haver encontrado com fins
literários,
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documentos antigos no edifício da alfândega de Salem, algo lhe tocou mais do que os
interessantes documentos do passado:
Mas o objeto que mais me chamou a atenção (...) foi um pedaço de pano vermelho,
poído e desbotado. Havia em volta dele vestígios de bordados de ouro, muito
gastos e deteriorados, de sorte que, do primitivo brilho, pouco ou nada já restava.
Era fácil de perceber que fora trabalhado com notável perícia; e o ponto (segundo
me informaram senhoras entendidas nestes segredos) dava mostras de uma arte
agora esquecida, que dificilmente será reencontrada mesmo pelo processo de
apanhar os fios. Este farrapo de tecido escarlate, – pois o tempo e o uso e a
sacrílega traça o reduziram a pouco mais do que farrapo – a um exame atento,
assumia a forma de uma letra: a letra maiúscula A. Procedendo a uma rigorosa
mensuração, cada perna da letra contava precisamente três polegadas e um quarto
de comprimento. Tem-se imaginado – disso não resta a mínima dúvida – que seria
um motivo de ornamentação de vestuário; mas de que modo devia ser empregado,
ou qual a categoria, honra ou dignidade a que, no passado, correspondia, isso era
um enigma que eu tinha pouca esperança de solucionar, não obstante o singular
interesse que em mim despertava. Meus olhos, como que cedendo a um fascínio,
cravavam-se na letra escarlate. Decerto, algum profundo significado ela continha,
que valesse a pena interpretar, significado que, por assim dizer, irradiava daquele
símbolo místico e penetrava no mais íntimo de minha sensibilidade, mas logrando
sempre evadir-se à análise de meu espírito.
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A letra escarlate encontrada por Hawthorne havia sido a prisão de Hester, a protagonista da
história, aquela que se engravidou do Rev. Dimmesdale. Em Nova Inglaterra (Boston,
Massachusetts), longe do marido que supostamente havia morrido em sua viagem da Inglaterra para
a América, uma vez que havia deixado para viajar depois de sua mulher, Hester apaixonou-se pelo
jovem e promissor pastor da comunidade de puritanos. Sem cumprir os rituais e o tempo previsto
pelas leis religiosas de sua comunidade para novo casamento em casos de desaparecimento do
corpo do marido morto, eles mantiveram relações sexuais. Hester ficou grávida e deu à luz Pearl.
Como não houve meios de a comunidade puritana arrancar dela o segredo da paternidade da
criança, nem mesmo pelo esforço dos magistrados e religiosos, incluindo Dimmesdale, depois de
colocada para fora da cadeia, a cadeia foi posta em Hester, em seu corpo, uma letra a exibir sempre
e publicamente o seu adultério. Não poderia ser vista em público sem a letra no peito, pois a
comunidade precisava saber e lembrar-se de seu ato pecaminoso. Hester passou a ser uma prédica
viva contra o pecado: punição exemplar. Só não foi condenada à pena de morte por causa da
suspeita de que seu marido estivesse morto e também porque o pai da criança não se manifestou 6
nem foi por ela denunciado. Tornou-se uma mulher cujo direito de ir e vir estava limitado pelo fato
de ir e vir encarcerada. Viveu anos de vergonha e preconceito.
Os líderes da comunidade puritana, para os quais não havia grandes distinções entre religião
e lei, acreditavam que o fato de a pecadora Hester carregar exteriormente o sinal e a prova de seu
pecado serviria de disciplina e adestramento às outras jovens que talvez passassem pelas mesmas
tentações e provas, e que enfrentassem em potencial as mesmas fraquezas e paixão daquela mulher.
Às decisões da liderança puritana masculina, acrescenta-se que as mulheres também eram juízas
severas de Hester e de seu pecado. Muitas consideravam leve a pena de carregar no peito a letra
escarlate de desonra pública para alguém que havia maculado a condição feminina puritana.
Hester passou a ser desprezada pela sua comunidade de irmãos. Por onde passava, sua
presença era anunciada pela letra escarlate da vergonha em seu peito. As pessoas afastavam-se dela.
Uma comunidade escolhida por Deus, eleita para abençoar o mundo todo, não podia aceitar o
pecado, o desvio, próprios da condição humana; nem mesmo a alegria, o gozo, o contentamento,
que são sentimentos humanos. Hawthorne esforçava-se para criar ao seu leitor a idéia e a imagem
de uma comunidade grave e séria, de pessoas com roupas escuras a cobrir o corpo todo, de
relacionamentos respeitosos, frios e distantes.
Apesar de ter sido mantida em sigilo a paternidade de Pearl, o ministro fornicador não teve
anos tranqüilos em sua lide pastoral em Boston. Padeceu de muita angústia e sofrimento; não só,
remorso e covardia acompanharam também a experiência daquele pregador da palavra de Deus que
era admirado por fiéis de todas as idades. Ele carregava na carne do coração o sinal que Hester
ostentava no exterior do corpo junto às vestes. Dimmesdale havia sido formado dentro da
mentalidade e da ética puritanas. Sua situação de tormento pessoal se agravava ainda mais na
medida em que o médico Rogério Chillingworth, o legítimo marido de Hester chegado à
comunidade, conhecedor da medicina do corpo e da alma, da farmacologia tradicional e da
indígena, aproximava-se dele e com ele mantinha relações de amizade e confissão. Mesmo antes de
conhecer o parentesco de Chillingworth com Hester, o médico já causava um sentimento estranho
no pastor, misto de confiança e repulsa, admiração e desprezo. Ambos passaram a morar na mesma
casa, a fim de que o médico cuidasse do pastor o tempo todo, pois a comunidade inteira estava
preocupada com seu ministro.
A saúde de Dimmesdale piorava diariamente a olhos vistos. O sentimento de pecado tomava
conta de seu ser. A doença da alma estava matando o corpo. Desejava ele a morte a cada dia e com
ela se encontrou ao final do romance sem poder desfrutar um único momento de paz na companhia
de Hester e de sua filha Pearl. Sua paz consistiu em revelar-se à comunidade para em seguida
abandoná-la indo ao encontro do juízo divino, merecido juízo para quem tem uma noção
exacerbada de culpa. Das muitas lições de moral que se desprendem da triste experiência do 7
inditoso ministro, tomamos somente uma e assim a formulamos: "Sê verdadeiro! Sê verdadeiro! Sê
verdadeiro! Mostra livremente ao mundo, se não o que em ti há de pior, ao menos alguns traços, dos
quais se possa inferir o pior".
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Italo Calvino
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afirma que o tipo de literatura de Hawthorne favorece a passagem da palavra
à imaginação visiva, posto que antes nascera de imagens circulantes na mente do autor – opinião
corroborada pelas adaptações para o cinema da história de Hester Prynne. Se no século XIX,
Hawthorne conseguiu relativizar um pouco a situação da mulher (ainda mais adúltera), numa
austera comunidade puritana do século XVII nas colônias do norte da América, dando a ela, apesar
de toda preconceito e intolerância contra si, um papel a desempenhar por meio de costuras e
bordados, e da assistência social, não foi permitido ao autor fazer o amor triunfar sobre a culpa. O
fundo moral que sua literatura tinha de conter fez com que o casal de apaixonados Hester e
Dimmesdale não pudesse mais gozar o sexo ou a vida em comum.
No século XX, Wim Wenders (Alemanha, 1972)
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levou ao cinema a história de Hester
Prynne (interpretada por Senta Berger) e na sua versão, fiel ao roteiro original, o pastor morre
(depois de profundas crises de culpa e remorso) sem viver com Hester e Pearl. A última voz do
filme cabe à filha (que por mar está fugindo da comunidade puritana com sua mãe), que canta uma
música: "Meu pai morreu / Eu me alegro por amanhã".
A relativização maior é feita na versão de Roland Joffé (EUA, 1995),
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em que Hester
Prynne é vivida por Demi Moore. O roteiro adaptado dá ao casal a oportunidade de viver marital e
familiarmente por alguns poucos anos, depois dos quais Dimmesdale morre precocemente. A
respeito de sua tragédia, Pearl faz o seguinte arrazoado – para alguns, a morte de meu pai foi castigo
dos céus por causa de sua paixão pela minha mãe, com o que eu não concordo: quem pode dizer o
que é pecado diante de Deus?
FONTE:
https://mail-attachment.googleusercontent.com/attachment/?ui=2&ik=749f53010f&view=att&th=13adba99d9512dc2&attid=0.1&disp=inline&realattid=f_h98njons0&safe=1&zw&saduie=AG9B_P8Fgl-M8Skfc4QFnAvqlf3c&sadet=1352685498888&sads=Naz42p8QnWtGGsRE5tAnn50WB-w&sadssc=1